Eu mesmo havia prometido continuar esse blog depois que voltasse para o Brasil, mas inúmeros fatores (entre eles a preguiça e o ócio não-criativo) me impediram de honrar a minha palavra até o dia de hoje, quando resolvi tirar a bunda do pudim e voltar à ralação.
Provavelmente vocês deverão estar se perguntando sobre o motivo pelo qual o blog ficou parado tanto tempo. Ou provavelmente não, já que a maioria dos leitores do blog são amigos ou parentes próximos que já ficaram sabendo do ocorrido. Mas vale a pena registrar: o negócio é que roubaram o laptop da Bela em Milão, e sem computador ficou difícil arrumar tempo pra escrever todo dia durante a viagem.
Além da falta de tempo, perdemos todas as fotos. E isso, aliado com o fato de que já se passaram quase 6 meses desde o término da viagem, vai acabar alterando o modo que eu utilizava para contar as nossas impressões dos passeios. Agora, vou deixar de narrar o que passou com a gente hora por hora pra fazer mais um relato das coisas que nos marcaram de um jeito mais geral, onde o que vale mais não é o acontecimento em si, mas a nossa lembrança do que foi único e extraordinário em cada cidade pela qual passamos.
Então vamos começar de onde paramos: Moscou. Como a última cidade que visitamos, Moscou também fica na Rússia. É, de fato, a capital da Rússia. Fomos pra lá de trem, um trem noturno que saía de São Petersburgo umas 11 da noite e chegava lá às 6 da manhã.
Vale a pena relatar nosso calvário para comprar os bilhetes do comboio. Como ninguém falava inglês na Rússia (e depois de três dias já sabíamos disso o suficiente para nem cogitar a possibilidade de haver um intérprete na estação de trem), chegamos no saguão da bilheteria sem saber o que fazer. Por sorte, havia ali um pequeno computador que os passageiros utilizavam para comprar ingressos ou fazer consulta de horários. A parte ruim é que não havia tradução (d'oh), era tudo em russo e em alfabeto cirílico. Assim, tentamos adivinhar mais ou menos qual opção significa partidas, tentamos decifrar qual campo era o horário e como se escrevia Moscou e São Petersburgo em cirícilo e voilá!, chegamos numa lista com várias opções de horários.
Daí só anotamos "ST. PETERSBURG (isso em cirílico é bizarro! nem tentamos) --> MOCKBA 23:00" num papelzinho e entregamos para a mulher do caixa. Fiz o sinal de dois com a mão indicando que éramos dois passageiros, ela fez as contas e virou pra nós o visor da caixa registradora, registrando alguns milhares de rublos. O valor parecia um pouco exagerado (cerca de 40 dólares por pessoa), mas não podíamos fazer nada. Pagamos e recebemos o bilhete. Daí voltamos ao hostel e perguntamos à recepcionista (que falava porcamente a língua anglo-saxã) qual era o vagão do trem e os assentos e ela nos explicou que havíamos comprado bilhetes para um trem-dormitório, e por isso eles foram mais caros. Mas no final das contas até que valeu a pena, pois li depois que trens na Rússia, especialmente os noturnos, são perigosíssimos. Além do mais, ainda não tínhamos tido (e nem tivemos depois) a oportunidade de viajar num vagão leito. Só pra constar: foi ótimo, muito confortável.
Chegamos em Moscou assim, cedinho e descansados. Para nossa surpresa, não havia neve; parece que havia nevado quando pousamos na cidade antes de ir pra São Petersburgo mas a neve já havia derretido. Saindo do trem, já encontramos a nossa anfitriã: a Tânia.
Tânia e Luigi (o chefe italiano da OMS) numa viagem de negócios à Suíça, no natal de 2007 (foto enviada à mim por e-mail)
Bom, a Tânia na verdade se chama Tatiana, ou Татьяна Колпакова no bom e velho russo. Tivemos contato com ela graças à minha mãe, que viajou para a Rússia com um grupo de intercambistas e ficou hospedada na casa dela em Nizhniy Novgorod, uma cidade grande e relativamente importante a leste de Moscou.
A Tânia é médica, e foi chamada pra trabalhar na sucursal russa da Organização Mundial da Saúde, sediada em Moscou. Por isso mudou pra lá, e morava num pequeno apartamento de um quarto só no subúrbio da cidade. Começamos a conhecer a hospitalidade do povo eslavo por aí: enquanto estivéssemos lá, ela iria dormir na casa de uma amiga e deixar sua única cama pra eu e a Bela dormirmos. Legal, né?
Bom, nos reconhecemos sem maiores problemas e fomos pegar o bondinho até a casa dela. Pelo caminho, ela foi nos contando coisas sobre a Rússia, sobre Moscou e sobre ela mesma. Nos mostrou, por exemplo, um dos vários prédios gigantescos no estilo Empire State construídos no regime comunista para abrigar órgãos estatais como a Universidade de Moscou, por exemplo. De acordo com a Tânia, o único fora da Rússia estava na Polônia, e foi um presente de Stálin ao povo polonês. Acabamos conhecendo esse prédio quando estávamos lá, mas isso é conversa pra depois.
Por coincidência, havia uma linha que passava em frente da estação de trem que estávamos (são umas quatro em Moscou inteira, se não me engano) e que nos deixou a três quarteirões do apartamento. Era um típico conjunto habitacional da época comunista, sem graça nenhuma. O hall de entrada estava meio sujo e mal cuidado, exatamente como minha mãe havia me contado (segundo ela, não existem síndicos ou zeladores na Rússia pós-soviética). Mas o que nos impressionou mesmo foi o apartamento: pequeniníssimo, completamente bagunçado e muito empoeirado para os padrões brasileiros de limpeza.
Ele consistia num pequeno corredor que dava acesso ao quarto de dormir à esquerda, que era razoalvemente grande. Dentro, havia uma série de armários, livros empoeirados, uma televisão antiga e um sofá velho (que depois ficamos sabendo que era também a cama, pois ele se desdobrava). Uma das paredes estava coberta por jornais em inglês da comunidade estrangeira residente em Moscou. Do outro lado do corredor, ficava um pequeno depósito de muvuca, fechado por uma cortina de chuveiro. Numa outra ocasião, sem a presença da anfitriã, fui bisbilhotar o que havia lá dentro e fiquei abismado: era muita, muita tralha que parecia estar ali a séculos. Depois fui perguntar pra ela, e ela me disse que quando alugou o apartamento isso tudo já estava lá dentro, e ela simplesmente não se deu ao trabalho de tirar. Estranho, né?
Logo após o depósito ficava o banheiro. Essa parte era fenomenal: o banheiro não passava de uma pia quase descolada da parede, uma privada sem tampa e uma banheira simplíssima que fora colocada ali sem cerimônia alguma. Nos cantos, vários baldes, panos, roupas velhas, sacos de lixo, jornais antigos e tudo quanto é tralha que se pode esperar encontrar num banheiro russo. O mais impressionante era o sistema de aquecimento de água: acoplado com o chuveiro, ficava uma caixinha que possuía uma pequena chama que ficava ligada o dia inteiro. Quando quiséssemos tomar banho, tínhamos que aumentar o nível do gás o suficiente pra esquentar a água, mas tínhamos que ser extremamente cuidadosos pra não apagar essa chaminha de modo algum; caso contrário, o gás iria escapar e bum!, já se era o apartamento. Uma explosão simples assim.
A cozinha era no estilo do banheiro: azulejos antigos e sujos, empoeirada nas beiradas, sem nenhum acabamento e cheio de tralha velha. Mas lembro de ter passado uns bons momentos ali. Quando chegamos lá pela primeira vez, por exemplo, passamos uma espécie de loja de conveniência logo embaixo do prédio da Tânia para comprar as coisas para o nosso café da manhã. Daí, sempre que eu e a Bela voltávamos do passeio, nós comprávamos nessa lojinha um tanto de "blinis" congeladas (uma espécie de panqueca russa, muito boa) e esquentávamos uma
penca na frigideira, e comíamos junto com suco, iogurte e chocolate, muito chocolate. Esse último, pra falar a verdade, é pra mim a maior iguaria que encontrei na Rússia. Era bem barato e o gosto era simplesmente maravilhoso. Havia centenas de tipos e marcas diferentes mesmo no menor dos mercados e as embalagens eram maravilhosas.
O chocolate do neném era um dos favoritos. A Bela até trouxe uma embalagem igualzinha essa de lembrança! (foto da internet)
Ficamos lá três dias. No primeiro, fizemos o básico: fomos ao Kremlin, à Praça Vermelha, entramos na Igreja de São Basílio, passeamos pelas igrejas do centro, fomos na porta do Balé Bolshoi (estava em reformas, blé), passamos aperto na hora de comer, etc. Uma grande dificuldade foi comprar água: eu sempre comprava água com gás ao invés de natural, não sei porque! Mas no final das contas sobrevivemos até a hora do jantar com a Tânia, que saía do trabalho lá pelas 6. Ela nos levou pelas ruas de artistas de rua malucos de Moscou, a velha e a nova "Arbat", até um restaurante bem simpático chamado My-My, que em russo lê-se Mu-Mu, como o barulho de uma vaca. Esse rango foi completamente sensacional: comemos "borsch"(uma sopa tradicional de beterraba), blinis, saladas, bifes, doces, etc. Saiu até meio carinho (tipo 10 dólares por cabeça), mas valeu muito a pena. Talvez tenha sido o melhor rango desde o macarrão da amiga da Gabi em Londres.A catedral de São Basílio na Praça Vermelha, que já tinha esse nome muito antes da URSS (foto da internet)
No segundo dia, conhecemos a Stella. É ela a amiga da Tânia que a estava hospedando enquanto dormíamos no seu sofá-cama. Ela também é médica, e contou pra gente que morou na Rússia até o término do regime comunista. Quando isso aconteceu, todos os médicos que antes trabalhavam pro Estado simplesmente pararam de receber, mas ninguém queria pagar pelas consultas. Pouco a pouco o novo governo foi separando verbas para o pagamento dos salários dos médicos, mas parece que aquela época foi muito difícil para todo mundo que trabalhava no sistema de saúde (até hoje o médico russo ganha muito pouco, e quase não existem clínicas particulares).Por isso, vários médicos como a própria Stella acabaram abandonando o país e indo se refugiar nos Estados Unidos. Ela chegou em Nova York com a filha e o esposo em 1992, e no começo trabalhava entregando jornais enquanto o marido (também médico) exercia um outro tipo de sub-emprego. Com o tempo, eles foram aprendendo a língua inglesa e acabaram muito bem empregados; ela, por exemplo, virou pesquisadora de medicina em uma universidade fodástica em Nova York mesmo. Depois de um bom tempo, eles juntaram um dinheiro e resolveram voltar para Moscou.
Ela havia chegado há menos de uma semana quando nós nos conhecemos. Os planos eram nós quatro (eu, Bela, Tânia e Stella) irmos para Sergiev Posad, uma pequena cidade a uns 100 km de Moscou que é o centro do cristianismo ortodoxo russo, como se fosse o Vaticano deles. Eu e a Bela pegamos um bondinho perto da casa da Tânia até a estação de metrô e de lá fomos até o centro, e encontramos as duas na frente da estação de trem.
A Stella estava bem quieta no começo, ao contrário da Tânia que falava muito e era extremamente agitada. Mesmo morando nos Estados Unidos por mais de 15 anos, parecia que a Stella tinha um pouco de vergonha de falar inglês, e a Tãnia ficava fazendo piadinhas o tempo inteiro pedindo pra ela tentar conversar com a gente. Foi bem divertido viajar com essas duas. Uma situação engraçada foi quando o cobrador veio checar os bilhetes. Estávamos os quatro conversando e havia uma mulher sentada no mesmo banco que nós, dormindo encostada na janela. O cobrador chamou a mulher uma vez em voz alta, e, não havendo resposta, simplesmente deu um cutucão brutalíssimo na coitada e gritou no ouvido dela algo como "O BILHETE POR FAVOR!!". Ela acordou assustadíssima, e deu pra ver que faltava pelo menos uns 5 dentes nas arcadas da frente. Ficamos meio de cara com a falta de noção do trocador e com dó da pobre mulher, mas de repente a Tânia começou a rir muito alto olhando pra mulher e a Stella também. Daí a própria mulher - que chegou a ficar pálida de susto - começou a rachar, e o cobrador também entrou nessa. Daí ficaram os quatro rindo e conversando em russo, e eu achei aquilo o máximo.
Isso foi uma das coisas que me deixou impressionado na Rússia. A simplicidade desse povo é fenomenal. Lembro de várias vezes que a Tânia entrava no metrô e haviam três lugares vagos mas separados por uma pessoa que estava sentada entre deles. Óbvio que a gente não entendia o que a Tânia falava, mas a impressão era que ela simplesmente virava pra pessoa e dizia: "Ou, arreda aí porque a gente quer sentar", sem a menor cerimônia. E a pessoa simplesmente arredava sem fazer cara feia nem nada. A Tãnia fazia isso mesmo até com a gente, ficava dando pequenas ordens assim ao invés de perguntar o que a gente queria fazer. Era bem estranho, principalmente para nós brasileiros acostumados a "com licença, por favor, obrigado" e etc. Mas a simplicidade e a falta de hostilidade no jeito dela acabava sendo tão natural que eu não via problema nenhum no seu modo de agir.
Em Sergiev Posad, a Tânia comprou um mapa e alugou uma guia bilíngue que fez o passeio com a gente em inglês. Ela ia explicando igreja por igreja, mas estava extremamente difícil entender o que ela falava porque sua pronúncia era horrível! Parece que ela falava um inglês bem porco, mas decorou um texto gigantesco e ia simplesmente tentando repetir o que ela havia decorado sem saber pronunciar nada direito. Mas mesmo assim foi bem legal. Aquele conjunto de igrejas brancas com os domos em forma de cebola douradas é incrível, muito bonito mesmo. E ainda assistimos uns 20 minutos de missa que a Stella e a Tânia fizeram questão (lá eles assistem só um pedacinho da missa e vão embora, ninguém fica para o culto todo que demora mais de 3 horas), e foi tão maravilhoso quanto a primeira vez que vimos essa cerimônia em São Petersburgo.
Durante o passeio, a Stella e a guia ficaram conversando por um tempaço. Depois a Tânia veio rindo nos contar que as duas estiveram lembrando de como a vida era boa no tempo do comunismo e como hoje tudo havia piorado tanto. Fomos perguntar pra Stella se ela achava isso mesmo e ela nos explicou que existem coisas boas nos dois regimes e que ela não saberia dizer qual é melhor, mas que certamente havia muita coisa que piorou bastante da época delas pra época de hoje. Logo depois a Stella olhou para um grupo de crianças, alguns com máquinas digitais e iPods, bem do lado de várias vovózinhas rezando e sacerdotes cantando e comentou que pra ela a maior diferença entre os russos e os americanos estavam nas gerações antigas, porque as mais novas eram iguais nos dois países.
Na hora do lanche, fomos para uma lanchonete e pedimos dois salgados. A Tânia perguntou se queríamos chá ou café e respondemos não queríamos nada. Ela insistiu como se não tivesse entendido a nossa resposta - acho que pros russos é impossível não querer beber nada quente na hora do lanche. Então respondemos café. Ela nos trouxe dois chás - é incrível essa mania que o povo eslavo tem de tomar chá. Isso foi engraçado também na Polônia e em Madrid, mas isso é papo pra depois também.
Jantamos lá em Sergiev Posad mesmo, e o jantar estava fenomenal. Foi também um pouco caro, tipo 500 rublos (20 dólares) para os dois, mas valeu a pena com certeza. Dentro do restaurante estava rolando um casamento, e me lembrei de que minha mãe havia me dito que na Rússia a gente vê casamento em tudo quanto é lugar. Nós mesmos já havíamos visto dois em São Petersburgo e um em Sergiev Posad. Dentro do restaurante, todo mundo estava fumando - lá até pouco tempo era liberado até fumar dentro de aviões. Isso foi um pouco desagradável, mas o rango tava tão bom (a sopa, principalmente) que nem nos incomodamos.
No terceiro dia, voltamos à Praça Vermelha pela manhã com a Tânia para tirarmos fotos do lugar (que eu acidentalmente apaguei durante o passeio de Serguiev Posad) e fazermos o passeio turístico mais legal de todos: ver o cadáver mumificado de Lenin no mausóleu. Pra isso tivemos que pegar uma fila de cerca de 50 pessoas, praticamente todos turistas estrangeiros. A Tânia nos contou que ela havia entrado no mausoléu apenas uma vez numa excursão da escola. Ela veio de Nizhniy Novgorod só pra isso e teve que entrar numa fila gigantesca de mais de 200 pessoas às 5 horas da manhã num dia de inverno de Moscou e esperar por horas até poder entrar pra ver o Lenin.
Nós também o vimos. Ele parece um boneco de borracha e é minúsculo. Lá dentro não pode parar de andar por um instante sequer (a Bela ganhou um xingo em russo por causa disso) e muito menos tirar fotos. Na saída, existe uma espécie de cemitério das personalidades comunistas, onde estão enterradas figuras como o astronauta Yuri Gagarin, o americano John Reed e o próprio Joseph Stálin. A Tânia ficou explicando tumba por tumba, e era impressionante o quanto ela sabia sobre a história do país dela.
Vladimir Ilyich Lenin, como ainda pode ser visto em seu mausoléu na Praça Vermelha, em Moscou (foto da internet)
À tarde, fomos passear em um castelo/parque recém inaugurado chamado Tsaritsino. A história desse lugar é o seguinte: a czarina Catarnia, a Grande, mandou seu arquiteto projetar um palácio pra ela em Moscou (na época, a sede do Império Russo era em São Petersburgo). O cara demorou uns 30 anos pra terminar a obra, mas a imperatriz viu e não gostou; mandou demolir tudo. Depois disso, o terreno ficou abandonado por uns 70 anos até que um outro arquiteto planejou um novo palácio e começou a construção, mas o projeto acabou sendo abandonado no meio do caminho. O governo russo retomou as obras na década de 90 e terminou a construção no ano passado, fazendo do palácio um grande museu.
O passeio foi bem legal, já que o parque era maravilhoso e o castelo também. O grande problema era que não havia nada, absolutamente nada em inglês. Toda as placas estavam somente em russo e a guia que a Tânia contratou para explicar as coisas pra nós não falava outra língua. Daí elas tentaram meio que traduzir para nós pouco a pouco o que ela dizia, mas foi meio complicado. Mas mesmo assim gostamos.
Depois do passeio, fomos para a casa da Stella conhecer sua filha e lanchar. Chegando lá, ficamos de cara! O prédio era moderníssimo, fazia parte de um conjunto de quatro prédios em formato cilíndrico, tinha várias luzes brilhantes que mudavam de cor e uns 50 andares. O contraste com o prédio da Tânia era bizarro, e isso nos levou a pensar que quem tem grana na Rússia deve viver muito bem. A filha dela era bem legal também; ela falava inglês fluente pois foi criada bilíngue nos EUA, e ficamos conversando sobre futebol, cultura americana e países bizarros que elas já haviam visitado (como Turcomenistão e Cazaquistão, países da ex-URSS).
O lanche foi um pouco engraçado. No primeiro dia que estávamos lá, a Tânia comentou comigo que minha mãe havia amado as melancias da Rússia (watermelons, em inglês). Daí eu comentei que também gostava muito de melancia. Acontece que o que ela queria dizer era apenas melons (ou melões, em português), e eu não gosto nem um pouco de melão. A Bela, então, simplesmente odeia, não consegue nem comer. Mas a gente só foi entender esse mal entendido depois que a Tânia chega com um melão gigantesco, que dava pra alimentar uma família de 10 pessoas. Eu fiquei meio sem graça de falar que não gostava, e acabei forçando pra comer meus dois pedaços. A Bela deu umas mordidas com muito esforço, mas eu acabei tendo que comer as duas fatias dela. Mas quando eu pensava que o pior já havia passado, a Tânia cortou mais um pedaço pra cada e botou no nosso prato. A gente falou que não queria, mas o jeito mandão russo da Tânia é imbatível. Eu ainda comi o meu, mas a Bela simplesmente desistiu e deixou pra lá.
A nossa última noite foi também bem maluca. Como a gente ia sair de manhã bem cedinho, a Tânia decidiu que iria dormir junto com a gente na casa dela pra poder nos levar até o aeroporto de manhã, já que ela não confiava na nossa habilidade de achar o aeroporto numa cidade onde todas as placas estão em cirílico. O problema era que lá só tinha uma cama, e acho que no final das contas nós três iríamos dormir juntos, no tradicional sofázinho.
Mas aconteceu o seguinte: eu tava querendo experimentar uma cerveja russa, então comprei uma indicada pel a Tânia naquela loja de conveniência embaixo do prédio dela. Daí chegando lá em cima, ela me falou: "Olha, é isso que os homens russos comem quando tomam cerveja", e tirou de um saco plástico que estava guardado numa gaveta dois peixes pequenos secos e salgados, mas ainda com escama, cabeça, tudo! Eu olhei praquilo e perguntei como comia e ela me mostrou o jeito certo, que era tirar pequenos nacos do corpo do peixe e deixar o rabo e a cabeça pra lá. Achei meio estranho comer peixe assim, mas até que deu um tira-gosto legal.
Logo em seguida, ela abriu a geladeira e tirou um pedaço de uma coisa branca e botou num prato. Eu perguntei o que era aquilo e ela me disse que era gordura de porco. Daí eu pensei: "Ah, claro, ela deve fritar isso e deve ficar parecido com uma pururuca, sei lá", mas ela simplesmente pegou a gordura com a mão e deu uma mordida gigantesco no negócio. Cru, assim, sem mais nem menos. Ela me ofereceu e eu venci o asco e dei uma bitoca também. Acreditam que era até gostoso o negócio? Meio nojento, mas gostoso.
Mas o principal mesmo eram as sementes de abóbora. Tinha um saco cheio disso, e a gente ficou comendo sem parar durante horas. Até que de repente ela botou uma na boca, parou de falar e entrou pra dentro do quarto e começou a falar em russo no telefone. Daí fomos descobrir que ela havia quebrado o dente da frente abrindo a semente (isso se come igual a um pistache, mais ou menos). Ela havia decidido então ir para a cidade natal dela, Nizhniy Novgorod, para se tratar com um dentista conhecido, e já havia inclusive ligado para o seu chefe na OMS (o Luigi da foto) e dito que iria faltar ao trabalho no dia seguinte.
E foi assim que a gente se agilizou. Ela partiu na mesma noite de trem pra sua cidade após explicar 10 mil vezes como chegar no aeroporto e nós dormimos sozinhos pela última vez na casa dela. Saímos bem cedo, trancamos a porta e jogamos a chave fora; acho que ela tinha mais umas duas ou três cópias. Daí fomos pro aeroporto sem nenhum problema, e de lá pegamos nosso vôo pra Polônia, de volta à União Européia.